Todo ano, milhares de pessoas perdem suas vidas e muitas outras sofrem lesões não fatais, resultantes da violência auto infligida (comportamento suicida e automutilação), interpessoal (entre família, parceiros íntimos, amigos, conhecidos e desconhecidos), ou coletiva (grupos mais amplos – como estados-nação, milícias, e organizações terroristas – que visam alcançar objetivos políticos, econômicos e sociais). Existem várias maneiras de se definir a violência, e sua raiz está sempre, de alguma maneira, conectada ao ato de violar. A Organização Mundial da Saúde a define como:
O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (KRUG, 2002, p. 5).
Uma violência, então, não resulta necessariamente em lesões ou morte, isso limita a compreensão da totalidade do impacto da violência sobre as pessoas, as comunidades e a sociedade como um todo, mas uma opressão/sufocamento com consequências imediatas, bem como latentes, podendo perdurar por anos após a violação inicial. Algumas causas podem ser facilmente percebidas e outras, estão profundamente enraizadas no arcabouço cultural e econômico da vida humana (KRUG, 2002).
Tanto Butler quanto a Organização Mundial da Saúde (conforme citado por CONSORTE, 2020, p.41), admitem que existe uma dificuldade explícita na tentativa de definir o que é violência, não apenas porque formas de violência podem se transformar com o tempo, mas também porque qualquer ato que seja classificado como violento está sendo avaliado a partir de um contexto ou um recorte específico de interpretação. Cada ser vivo tem suas vivências, experiencias e sofrimentos relacionadas à mesma, ou seja, sabe o que é violência; do seu ponto de vista de realidade, é explícito.
Um grande paradoxo, considerando as potencialidades humanas; em momentos podem ser verificados comportamentos altruístas, pertencimento coletivo, reconhecimento de nossa interdependência e reciprocidades ao próximo, em outros, comportamentos destrutivos e individualistas, que por sua vez fazem parte da história civilizatória. Nesse momento da história da humanidade, a neutralidade não se sustenta enquanto posicionamento que justifique a ausência de senso crítico perante necessidades de mudanças. Ou se ajuda a manter as coisas como estão, ou a transformá-las. Escolhas são feitas, das simples e sem grande consequência às mais complexas e que podem ter impacto profundo na vida de uma ou de muitas pessoas. Para Feizi Milani (2003a, p.17):
A espécie humana, a mesma que inventou a violência, é a única que pode estabelecer a paz sobre a Terra. […] Neste século que se inicia, o desafio mais importante perante cada indivíduo e a humanidade como um todo é o de fazer as escolhas certas e de forma consciente, para a construção de uma Cultura de Paz.
É percebível a necessidade de um maior aprofundamento acerca da temática da violência, ainda mais por se tratar de um assunto sistêmico, que envolvam poderes de estado e de grupos, sob uma minoria. Compreende-se que isto é apenas um recorte e um ponto de partida, tamanha dimensão história, econômica, política, pessoal e social que se atravessa a violência em nossas vidas, como um grande campo de disputas. Fica aqui o compromisso de ampliar esta visão a pesquisas futuras. Concordo com o filósofo Jean-Marie Muller (1995, p.54) quando diz que “não importa apenas recusar-se a legitimar a violência, é preciso retirar-lhes sua legitimidade”. Em seu livro “O Princípio da não-violência”, considera que:
Quando o homem toma consciência da violência como de uma perversão radical da sua relação com a humanidade, com a sua própria humanidade e com a humanidade do outro, descobre que deve contrapor-lhe a um não categórico. Esta recusa em reconhecer a legitimidade da violência funda o conceito de não-violência (MULLER, 1995, p.53).
O termo não-violência tem sua origem na palavra ahimsa, utilizada nos textos de literatura budista e hinduísta, significando “a ausência de toda e qualquer intenção de violência, ou seja, é o respeito em pensamento, palavra e ação pela vida de todo ser vivo. […] A ahimsa é muito mais que uma interdição, ela é uma exigência, um princípio” (Muller, 1995, p.56-58). Este princípio trabalha como um caminho para a valorização da vida humana, que é sagrada. Uma modalidade de ser e de estar no mundo que se aprende com a prática, com o exercício cotidiano inspirado no compromisso de não causar sofrimentos espontâneos nem alimentar ressentimentos. “Se o que se busca é estabelecer relações mais justas e solidárias, então é necessário concentrar o poder reparador da ação na própria situação que gerou e sustenta o conflito” (DISKIN, 2009, p. 27).
Importante considerar o que Judith Butler (2021) propõe quando diz que a tarefa da não violência é encontrar formas de viver e agir no mundo que possam controlar ou reduzir a violência, ou que sua direção seja invertida, precisamente nos momentos em que não existe saída. Pois bem, inverter a direção da violência praticando violência? Isso não iria contra a não violência? Para Butler (2021, p. 33), “embora algumas pessoas confundam agressão com violência, é fundamental ressaltar que formas não violentas de resistência podem e devem ser praticadas agressivamente.”
Segundo Muller (1995), os indivíduos legitimam a violência como uma estratégia para defender sua comunidade, quando sentem que esta se encontra sob ameaça. Também, devido sua presença na história da humanidade, há de se pensar na violência como uma característica natural do comportamento humano. Mas na verdade, não é a violência que está inscrita na natureza humana, mas sim a agressividade, “o que acontece é que habitualmente são misturadas violência, raiva e agressividade, sendo a violência apenas uma possibilidade de expressão da agressividade e da raiva, mas não a única” (CONSORTE, 2020, p.51).
A agressividade é um poder de combatividade, de afirmação de si, que é constitutivo da minha própria personalidade. Permite-me enfrentar o outro, sem me esquivar. Ser agressivo é afirmar-me perante o outro caminhando ao sua direção. […] é aceitar o conflito com o outro sem se submeter à sua lei. Sem a agressividade, estarei constantemente a fugir das ameaças que os outros fazem pensar sobre mim. Sem agressividade, serei incapaz de ultrapassar o medo que me paralisaria e me impediria de combater o meu adversário e de lutar contra ele para fazer reconhecer e respeitar os meus direitos (MULLER, 1995, p.20-21).
Está errada a educação que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra as injustiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência, um papel altamente formador. O que a raiva não pode é, perdendo os limites que a confirmam, perder-se em raivosidade que corre sempre o risco de se alongar em odiosidade (FREIRE, 2018, p.41).
A não violência, então, não se trata de uma linguagem pacífica e sim uma linguagem que busca justiça; e muitas vezes, é preciso fazer muito barulho para ser ouvido, conquistar direitos e interromper injustiças. “Tem, portanto, um sentido realista, e não pede necessariamente que nos amemos, mas que evitemos algo que sempre tememos e queremos evitar: a violência, a violação de outrem, a qual, reverbera pelo tempo e pelo espaço familiar e social” (PELIZZOLI, 2012, p.7).
Um grande desafio da humanidade é evoluir da cultura da violência para uma cultura baseada na cooperação, na diversidade, justiça e participação; uma cultura de paz. Uma cultura que, segundo Callado (2004), conta com uma estratégia política para transformação da realidade, caracterizando-se pela busca coletiva de um modo de vida e de relacionamentos que contribuam para a construção de um mundo marcado pela justiça, solidariedade e paz. Esta proposição exigiria o esforço organizado e sistemático de cada integrante da humanidade e implicaria também em transformações das estruturas sociais (DUSI, 2006).
O conceito de Cultura da Paz ganhou enorme relevância a partir da Resolução 53/243 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU (1999) intitulada “Declaração e Programa de Ação sobre numa Cultura de Paz”, que elucida o que é Cultura de Paz em seu artigo 1º:
[…] Cultura de Paz é um conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de vida baseados: a) No respeito à vida, no fim da violência e na promoção e prática da não-violência por meio da educação, do diálogo e da cooperação; d) No pleno respeito e na promoção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais; e) No compromisso com a solução pacífica dos conflitos; i) No respeito e fomento ao direito de todas as pessoas à liberdade de expressão, opinião e informação; j) Na adesão aos princípios de liberdade, justiça, democracia, tolerância, solidariedade, cooperação, pluralismo, diversidade cultural, diálogo e entendimento em todos os níveis da sociedade […] (Resolução 53/243/199 da ONU).
Uma Cultura de Paz propõe uma habilidade em integrar a diferença e encontrar valores comuns, e diante disso, perceber as diferenças como enriquecedoras e não ameaçadoras, gerando interesse ao invés de temor (Almeida, C. D. de, Oliveira, S. B., & Brum, L. S., 2019). Esta cultura, dessa forma, transcende o conceito da não-violência ao mesmo tempo que o abrange, contemplando ações pacíficas pautadas nos valores, nos direitos humanos, na democracia, no desenvolvimento, na ética, na cidadania, bem como na atitude de não-violência. Construir a Cultura de Paz requer atitudes conscientes, práticas, cotidianas e continuadas (MILANI, 2003).
(…) Trecho retirado do meu trabalho de conclusão de curso – Esperançar: Uma conversa com a comunicação não-violenta
Referências
Almeida, C. D. de, Oliveira, S. B., & Brum, L. S. (2019). DA COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA À CULTURA DE PAZ: círculos, narrativas e contribuições. Revista Observatório, 5(4), 463-480. https://doi.org/10.20873/uft.2447-4266.2017v5n4p463
Butler, J. (2021) A força da não violência: um vínculo ético-político. Tradução Heci Regina Candiani; [prefácio de Carla Rodrigues]. – 1. ed. – São Paulo: Boitempo.
Callado, C, V. (2004). Educação para a Paz: promovendo valores humanos na escola através da educação física e dos jogos cooperativos. Santos/SP: Editora Projeto Cooperação Ltda.
Consorte, P. (2020). Como você está? Princípios da Comunicação Não-Violenta permeabilizando relações. (Dissertação de mestrado em Comunicação e Semiótica, PUC-SP, São Paulo). Recuperado de: https://pedroconsortebr.files.wordpress.com/2021/02/tese-de-mestrado-pedro-leme-consorte.pdf.
Diskin, L. (2009). Cultura de Paz – redes de convivência. Cartilha publicada pelo Senac São Paulo. p.50. Disponível em: http://www1.sp.senac.br/hotsites/gd4/culturadepaz.
Dusi, M, L, H, M. (2006) A construção da cultura de paz no contexto da instituição escolar. (Dissertação de mestrado em Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília). Recuperado de: https://repositorio.unb.br/handle/10482/6324.
Freire, P. (2018). Pedagogia da Autonomia : saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra.
Krug, EG et al. (Eds.). (2002). Relatório Mundial sobre violência e saúde. Geneva, Organização Mundial da Saúde. Disponível em: https://opas.org.br/wp-content/uploads/2015/09/relatorio-mundial-violencia-saude.pdf.
Milani, F., J, R. (org.). (2003a). Cultura de paz: estratégias, mapas e bússolas. Salvador: INPAZ. Recuperado de: http://www.siteantigolondrinapazeando.org.br/downloads/livropnv/PNV-CulturadePaz-EstrategiasMapaseBussolas.pdf.
______. (2003). De espectadores a protagonistas da Cultura de Paz. Em: Na inquietude da Paz, Ricardo Balestreri (org.). (3ª ed, 13-32). Passo Fundo/RS: CAPEC. Retirado de: http://www.dhnet.org.br/educar/balestreri/inquietude/feize_milani.htm
Muller, J.M. (1995). O Princípio de Não-Violência: Percurso Filosófico. Coleção Direito e Direitos dos Homens. Instituto Piaget. Lisboa.
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