Acompanhamento terapêutico: Possibilidades itinerantes de escuta

Acompanhamento terapêutico: Possibilidades itinerantes de escuta

A partir do momento em que se pensa na desinstitucionalização da loucura preconizada pela Reforma Psiquiátrica Brasileira para além da substituição dos espaços físicos manicomiais, concebe-se que essa situação produz uma problemática às práticas dos trabalhadores de saúde, configurando-se assim, como uma questão clínica. Partindo desse pressuposto, a ênfase da desinstitucionalização preconiza o desmonte das lógicas manicomiais que fomentam e estigmatizam a loucura. Dentre as concepções posteriores à reforma psiquiátrica, surge à tecnologia de Acompanhamento Terapêutico (AT), sendo o que diversas definições literárias trazem como dispositivo que visa à promoção de autonomia e reinserção social, não se limitando a espaços físicos, promovendo uma desinstitucionalização do serviço; sendo um dispositivo clínico que entende o(s) território(s) e as redes do sujeito como potenciais terapêuticos.

Partindo dessa lógica, com objetivo de problematizar os efeitos do dispositivo AT como uma clínica itinerante, exponho pontos, linhas e referências sobre a temática, além de reflexões da oportunidade que me foi concedida, em vivenciar a prática do AT no Centro de atenção psicossocial Prado Veppo (CAPS) na cidade de Santa Maria, RS.

A partir da mudança sócio histórica no campo da reforma psiquiátrica, as perspectivas de sofrimento psíquico mudam concomitantemente no decorrer desse tempos; hoje, busca-se pensar e promover um trabalho multidisciplinar de fomento à saúde; sendo contextualizado um olhar destinado para além do sujeito uniforme, mas sim para o sujeito enquanto ser constitutivo da atmosfera em que habita, como um ser agente na constituição da família, da comunidade, cidade, territórios em geral, demandando cuidado em ambos aspectos de sua constituição. Contudo, as construções profissionais com enfoque patológico, muitas vezes não atravessam as construções ampliadas da reforma psiquiátrica, de maneira a manter acesa a “chama manicomial”.

No desenvolvimento de novos dispositivos para a real promoção de autonomia e bem-estar a partir da ideia de ser enquanto território e território enquanto ser surge a prática de acompanhamento terapêutico, o que historicamente, em sua construção, chegou a ser chamado de “amigo qualificado”.  Dentre o dispositivo, o vínculo terapêutico desenvolvido diferencia-se do vínculo do usuário com o serviço de saúde mental, afasta-se, assim, da inferência da volatilidade do serviço na atuação do profissional, promovendo além de uma desinstitucionalização, um ótimo contato do profissional para com o serviço e para com o usuário. É poder buscar/observar um olhar totalizado no indivíduo, no sentido de não haver verticalidades quanto a formas de conduta, sendo assim considerado um trabalho clínico; como acredito que se encaminha. Demandas de/da terceiros/rede vem, e é de extrema importância trabalhar esse diálogo em conjunto, porém é só no laço da transferência que esse dispositivo consegue realizar algum progresso ao usuário, com base no que se espera.

A partir dessa construção externa e abstrata, o ser do usuário passa ao ser em descoberta em cada perpasse da clínica a céu aberto. É indiferente se o espaço da cidade toma aqui a forma de uma rua, uma praça, uma cama ou um quarto, quando se considera que cada um desses territórios pode revelar-se poroso à matéria do mundo para além de suas fronteiras mais ou menos estreitas, que se habita em uma perspectiva em aberto, conflitiva, de um itinerário por vir. (PALOMBINI, 2005). Com isso, observa-se a potência do AT em relação à movimentação dos saberes do serviço de saúde mental para com o trabalho resistente à lógica manicomial. Pensa-se no AT não apenas como mais uma ferramenta clínica potencializada pela reforma psiquiátrica, mas como dispositivo operante frente à cronificação do serviço. Podemos dizer que o trabalho do acompanhante terapêutico é uma intervenção voltada para a socialização, um fazer que procura atender as necessidades e desejos da pessoa a partir de situações reais da vida do indivíduo, permitindo que novos horizontes sejam vislumbrados e que haja o exercício de seus direitos.

Perturbações. Algo perturba, seja lá a quem, mas somos atingidos. O silêncio, a incerteza, o não foco, a distração, as palavras – não ditas, e sim, sentidas (singularmente), e incoerentes à, pode também transtornar. Que vazões damos para nossos sentires? Sabe, dentre o pouco que sei sobre o sofrimento, observo nessas escutas que algo da realidade se trancafia, se aprisiona, – fica lá – e o aqui e agora se investe de não sentido, muitas vezes impedindo que o sujeito beire o seu próprio tratamento, para assim ter seu sentido; é um cuidado muito incerto onde a cada encontro vamos descobrindo e indagando um pouco mais os possíveis caminhos e novas verdades que ao tempo vão surgindo; por vezes, buscando fugir ou fazendo borda a compreensões de sujeito enquanto estrutura, nomenclaturas à conectar e dar forma a percepções da personalidade/realidade do indivíduo.

É poder vibrar, depois de uma série de encontros, – como AT -, estimuladores de reflexões enquanto meu papel ali, na tentativa de não fazer-se tornar-se crônico, contínuo, e poder ouvir que o sentido do AT é de “incentivar e trazer forças para a vida”. Isso remete-me a metáforas trabalhadas em conjunto: um imenso mar que é a vida e por ela, em nossos barcos transitamos. No momento do AT, eu apenas auxilio à remadas, acompanho sutilmente seus passos, em escuta atenta e potencializadora de vida, mas que ao encerrar o encontro, seguirei remando meu barquinho, nas andanças da vida.

O AT vem com esse papel: em propor um trabalho ao indivíduo, em seu próprio ambiente, mas especificamente em sua casa; mas para além, em seu território de convívio, onde as contingências se estabelecem e o mesmo estabelece relações com o meio. Venho buscado trabalhar com esse propósito de saúde e o que isso o interliga na sua real situação familiar, financeira, afetiva, de corpo em movimento, de presença, com o que já se tem, tornou e existe. É, e vem sendo um terreno muito indefinido e muito construtivo por minha parte, que a cada novo encontro vou descobrindo também meu papel em estar lá, acompanhando e auxiliando em meio à itinerâncias. É interessante pensar que uma solicitação muitas vezes não é feita necessariamente a pedido do usuário. Um caso, por exemplo, veio do território do sujeito, uma Unidade Básica de Saúde, onde por observação de um Agente de Saúde, chegou ao Núcleo Ampliado de Apoio à Saúde da Família (Nasf), ao CAPS, e até mim, em pedido de acompanhamento. É incrível existir um trabalho em rede, em que esse encontro itinerante possa vir a acontecer, visto que as condições de não acesso a serviços de saúde podem muitas vezes impedir tal locomoção; observa-se assim que essa aproximação é possível, e a cada novo encontro, diferentes espaços de conversa e acolhimento vão surgindo, se fazem surgir; como uma interessante relação que lembro-me de ouvir em umas de minhas andanças em AT a respeito das poltronas de uma clínica de psicologia. “Olha, a única diferença aqui para mim é que estamos em uma praça à céu aberto. A poltrona é a mesma, só que de madeira.”

A questão creio em estar nesse laço da relação em que se estabelece, nesse vínculo de um “amigo qualificado” que se apresenta na tentativa de promoção de cuidado e saúde mental, que busca também dosar de seu papel, e sobre esse suposto saber colocado em jogo. Afinal, o que me move ao encontro é um trabalho de AT que venho a experienciar em conjunto. Prefiro, assim, que a resposta a respeito do sentido de nosso encontro ali venha do próprio usuário, pois assim sinto que estamos caminhando juntos.

Sigo nessa jornada itinerante aperfeiçoando-me na busca por somar para com o outro; pelo amparo, pela semelhança, pela sincronicidade. Lapidando reviravoltas em entendimentos, na busca por receber de forma mais clara aquilo que chega e poder direcionar, dar sentido, fazer valer, trazer vida. É delicado refletir o quanto para uns se torna mais fáceis alguns entendimentos enquanto formas de ser e encarar aquilo que se chega, já para outros é um mar bem mais profundo, mas mesmo assim acredito que as profundezas são ótimas companhias, um terreno que não se torna superfície de fácil acesso, rasa, porém, exige uma postura de comprometimento e de aperfeiçoamento para uma maior compreensão do eu. E parte daí que vejo onde a prática do AT trabalha: nesse olhar externo ao próprio sujeito em meio ao seu próprio ambiente e território de deslocamento e pertencimento.


 

Referências

PALOMBINI, Analice; BELLOC, Márcio; CABRAL, Károl. Acompanhamento terapêutico: vertigens da clínica no concreto da cidade. Estilos da Clínica. Revista sobre a Infância com Problemas. São Paulo. X(19): 32-59, junho/2005.

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João Roque Corazza Martins

CRP 12/23825

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